Covid-19: profissionais da saúde de Campinas narram rotina tensa em semana com recorde de casos

15/06/2020

 Ao longo da semana, balanços diários de casos do novo coronavírus em Campinas (SP) indicavam o pior cenário da pandemia até então na cidade. Mas em quê esses números se traduzem para quem vive a rotina da linha de frente contra a Covid-19? Um enfermeiro infectado, uma médica que perdeu o pai, uma profissional dedicada a pacientes graves de uma UTI... O G1 conversou com trabalhadores da rede pública sobre a realidade enfrentada por eles nos últimos dias.

 
Aumento na demanda, medo, sobrecarga, tensão e adoecimento das equipes foram alguns dos pontos destacados pelos servidores ouvidos pela reportagem. Apesar da rotina desgastante - com falta de efetivo e de treinamento adequado em alguns casos - até agora as equipes têm conseguido oferecer atendimento a todos que precisam.
 
Mas a projeção feita por eles é de dias ainda piores pela frente com o aumento da movimentação nas ruas após a reabertura parcial do comércio e shoppings.
 
Só na última semana (de 6 a 12 de junho), os registros foram:
 
1.070 novos casos (aumento de 43,4%)
39 mortes adicionais (alta de 40,2%)
Número total chegou, com isso, a 3.535
Número total acumulado de mortes chegou a 136
 
Confira a seguir os depoimentos reproduzidos com nomes fictícios para preservar a identidade dos servidores:
 
Mário Gatti: 'Todos os dias têm óbito'
João (nome fictício) já viveu as duas pontas da pandemia: está na linha de frente do tratamento dos pacientes e também foi mais um contaminado. Após conviver com febre, dores de cabeça agudas, mal estar geral e diarreias, o enfermeiro que trabalha há cerca de uma década no Hospital Municipal Dr. Mário Gatti afasta a ideia de que é uma doença de sintomas leves.
 
“O hospital está lotado e a maioria dos pacientes está grave e são pacientes que demoram muito para se recuperar. Os mais antigos já têm quase um mês que estão entubados e você não vê melhora. Todos os dias têm óbitos”, descreve .
Do ponto de vista profissional, João afirma que a pressão psicológica que esta pandemia gera a diferencia de tudo que ele viveu na profissão. “A diferença é que esse vírus é altamente contagioso e está impactando os profissionais não só de forma física, mas mentalmente, porque achamos que vamos levar o vírus para casa”.
 
Segundo ele, o Mário Gatti está com respiradores e capacidade de atendimento na UTI suficientes até o momento, mas profissionais que não têm experiência em terapia intensiva foram colocados no setor com a abertura de novos leitos. Para ele, o treinamento básico que estas pessoas tiveram é insuficiente.
 
O enfermeiro relata preocupação com a reabertura gradual do comércio. O medo, agora, é de não dar conta da demanda. 
 
“Até o mês passado [maio], o número de pacientes clínicos tinha reduzido bastante com a quarentena, então, o hospital estava razoavelmente controlável. Porém, essa semana a nossa sala vermelha do PS já está lotada com pacientes que não são Covid”.
 
UTI do HC: 'ambiente apreensivo'
 
A cada plantão, Janaína fica responsável pelos cuidados de cinco a seis pacientes diagnosticados com o novo coronavírus que, pela gravidade do quadro, precisaram ser encaminhados à UTI de um dos principais hospitais do estado, o Hospital de Clínicas da Unicamp.
 
"Está um ambiente apreensivo, os leitos estão lotados, porém, a direção está sempre se articulando para abrir novos leitos, quando esses começam a ficar ocupados."
 
No último fim de semana, o estado chegou a bater 100% de ocupação nos leitos sob sua gestão em Campinas, realidade que aliviou dias depois com a criação de novas vagas. Essa expansão é positiva, mas preocupa os profissionais que, com o aumento da transmissão, daqui a pouco não haja espaço para mais ampliações.
 
"A gente ta preocupado em relação a espaço físico. A gente já evacuou várias alas e tá evacuando à medida em que aumentam os casos. Só que vai chegar uma hora que não vai ter onde internar se continuar aumentando assim. Então é essa a preocupação nossa.".
Janaína conta que, até agora, não presenciou falta de equipamento de proteção ou de insumo para dar atendimento à população. No entanto, o cuidado com os paciente exige um nível de atenção muito estressante.
 
"O receio é por tudo na verdade, mas minha apreensão acho que acaba ficando mais ligada ao fato te eu ter tantas atribuições e responsabilidade que fico extremamente apreensiva de ter esquecido algo, pela sobrecarga de trabalho e emocional...", desabafa.
UPA: 'Vai faltar gente'
Juliano atua na UPA São José e conta que, além do aumento dos casos entre moradores, tem crescido, e muito, o número de colegas contaminados. Ele mesmo já pegou Covid-19, se recuperou e voltou ao trabalho. O servidor confirma a pressão por leitos de UTI, mas acredita que haverá, em breve, falta de profissionais para atuar nesse atendimento.
 
"Vai faltar leito, mas também vai faltar gente. Temos que nos preocupar com os dois. O sistema é falho e acha que está certo, apesar de alertas que fazemos. Quem está na salinha não consegue ver o que está acontecendo aqui, ou finge que não está vendo", desabafa.
Ele denuncia, ainda, a falta de cuidado no isolamento dos pacientes com coronavírus dos demais. " Há triagem para casos respiratórios, mas depois você pega e a falta de estrutura faz com que você coloque em uma sala pacientes infectados próximos a outros que não estão, e coloca dois profissionais para cuidar dessas pessoas. É contaminação cruzada", alerta. A Prefeitura, entretanto, nega o problema. Veja abaixo detalhes do que a administração diz sobre o assunto.
 
De acordo com Juliano, muitas contaminações entre os profissionais da área ocorrem porque novos contratados não têm experiência em atendimentos. "Colocam gente na linha de frente que acabou de sair de curso técnico, sem qualificação, sem nenhum tempo para treinamento específico, e eles estão se contaminando", avisa. O município garante que oferece treinamento e que eles estão, inclusive, intensificados nesse período.
 
Luto na linha de frente
 
A médica Isabelle Meloni, de 30 anos, está afastada do trabalho há duas semanas. O período foi necessário por causa da internação e luto pela morte do pai, o médico José Meloni, uma das vítimas do novo coronavírus em Campinas (SP). Ao longo de quatro anos, eles trabalharam juntos na UPA do distrito do Campo Grande. "Um consultório ficava ao lado do outro, era gratificante", lembra emocionada a profissional que atua em outros dois hospitais da cidade.
 
Ela explica que no início da pandemia as pessoas evitavam ir até as unidades de saúde e eram mais cuidadosas, um cenário diferente quando comparado ao da última semana de maio. "Muitos pacientes ficaram até mais ansiosos e receosos por causa dos sintomas gripais. Quando apresentam, acabam procurando o pronto-socorro e surgiram casos de internação por suspeita de Covid-19".
 
Para a médica, o rigor da população com medidas para evitar a doença tem diminuído.
 
"Não estão se prevenindo tanto. É importante, principalmente com as pessoas do grupo de risco. Tem que cuidar", alerta.
Atenção básica: 'passamos o dia em alerta'
Servidora em um centro de saúde da periferia da cidade, Luciana conta da maior tensão com o aumento de atendimentos a pessoas com sintomas gripais na atenção básica na última semana.
 
"Olha, não é fácil. Ficamos com receio de contaminação, mesmo aqui sendo um local não tão contaminado como um hospital por exemplo. Mas passamos o dia em alerta para não coçar olho, boca..."
Ela explica que, por enquanto, a unidade, que fica localizada na região Norte da cidade, tem conseguido atender a demanda, e não tem faltado atendimento para a população. Ela conta que os profissionais têm trabalhado em iniciativas junto à comunidade para orientação em relação aos cuidados de higiene e distanciamento. No entanto, diz que o movimento nas ruas intensifica o medo entre os profissionais.
 
"O que mais me deixa aflita é a movimentação nas ruas. Ver o povo andando, enchendo as ruas... me causa um misto de angústia e tristeza", afirma.
 
O que diz a Prefeitura?
A reportagem procurou a Prefeitura para comentar algumas críticas feitas pelos profissionais. Veja o que disse a administração em nota sobre os principais pontos:
 
Contaminação e falta de profissionais na rede: "Desde março deste ano, a administração contratou 594 profissionais para a Secretaria de Saúde e Rede Mário Gatti de Urgência, Emergência e Hospitalar. Nos hospitais Mário Gatti e Ouro Verde; UPAs São José, Anchieta, Campo Grande e Carlos Lourenço; Samu; Centros de Saúde, Policlínicas e CAPS trabalham 7.558 servidores. Neste momento, 90 estão afastados por Covid-19. O número representa 1,2% do total. Além dessas contratações, há profissionais atuando no Hospital de Campanha e nos novos leitos de UTI do Hospital Mário Gatti por meio de organizações privadas".
Preocupação dos profissionais com a reabertura do comércio: "O programa Volta Responsável toma como base critérios técnicos definidos pela Secretaria de Saúde e pelo Comitê Municipal Covid-19. A situação é monitorada diariamente. Campinas publicou hoje [sexta-feira, 12] o decreto que prorroga a quarentena até 28 de junho."
Falta de treinamento: "Capacitações de pessoal sempre foram realizadas na rede e estão intensificadas no contexto da pandemia".
Risco de contaminação cruzada: "Em todas as unidades há separação da triagem e atendimento dos pacientes com sintomas respiratórios. Foi feito tudo que a estrutura física de cada unidade permitiu para garantir atendimento seguro e de qualidade. A orientação da Anvisa é que eles aconteçam em ambientes separados, como acontece na UPA São José. Não procede a informação que a mesma equipe faz os dois tipos de atendimentos. Inclusive, são escalas diferentes".
 
Fonte:G1

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