Com 500 mil mortos, número de vítimas de Covid-19 no Brasil já é maior que 8 genocídios

21/06/2021

 “A cifra de 500 mil mortos chama a atenção pela enormidade. É realmente terrível, apesar de não ser genocídio como estudamos na sala de aula”, diz Roland Kostic, professor de Estudos de Holocausto e Genocídio da Universidade de Uppsala (Suécia).

 
A comparação permanece válida ainda que se leve em conta as estimativas mais altas de vítimas para cada caso.
 
“Contabilizar o impacto de genocídios nem sempre é simples, porque há as vítimas diretas e as indiretas, que morreram por fome, doenças, deslocamentos forçados ou até suicídios”, afirma Kostic.
 
O genocídio cometido por forças sérvias na Bósnia, por exemplo, na década de 1990, resultou em estimados 30 mil a 40 mil mortos, ou menos de 10% da perda atual com a Covid-19.
 
No episódio mais traumático do conflito, o massacre de Srebrenica, em 1995 (que muitos consideram um “genocídio dentro do genocídio”), foram mortos cerca de 8.000 muçulmanos, ou 1,6% das vítimas do coronavírus no Brasil até aqui.
 
 
Outra matança que marcou o século 20, o genocídio cometido contra curdos no norte do Iraque pelo então ditador Saddam Hussein, deixou até 150 mil mortos no final dos anos 1980, muitos com o uso de armas químicas.
 
A Covid-19 no Brasil também já deixou mais mortos do que os dois principais genocídios do século 21.
 
Os massacres de populações de etnias negras em Darfur, no oeste do Sudão, por milícias árabes a serviço do governo, deixaram entre 100 mil e 400 mil desde 2003, dependendo da estimativa.
 
Já a perseguição ao grupo étnico dos rohingya, uma minoria muçulmana que vive no oeste de Mianmar, resultou em até 30 mil mortos desde seu início, em 2016.
 
Para que pandemia brasileira ultrapasse a mortalidade de outros genocídios, será necessário que o ritmo de mortes se mantenha em alta ainda por muitos meses, o que parece improvável à medida em que a vacinação avança.
 
Se o atual ritmo de cerca de 2.000 mortes diárias se mantiver, hipoteticamente, por mais cinco meses, a escala da crise sanitária brasileira será comparável à matança dos tutsis pelos hutus em Ruanda, em 1994, um genocídio que deixou entre 800 mil e 1 milhão de mortos, dependendo da estimativa.
 
Bem mais difícil, felizmente, é alcançar o patamar do genocídio armênio de 1915 a 1922 (1,5 milhão de mortos) e o do provocado pelo Khmer Vermelho no Camboja na década de 1970, onde as estimativas mais altas chegam a 3 milhões de vítimas.
 
Isso para não falar do Holocausto judeu, o maior genocídio da história humana, com estimados 6 milhões de mortos.
 
Para Ricardo Parolin Schnekenberg, médico brasileiro participante do grupo de pesquisa do Imperial College, no Reino Unido, é impossível saber até onde o número de mortos vai progredir. Certeza, apenas, é de que a desaceleração, mesmo com a vacinação, não será imediata.
 
“Ainda vamos sangrar por um tempo, com altos índices de mortalidade. Embora estejamos vacinando, o controle com medidas não farmacológicas, como estratégias de comunicação, distanciamento e rastreamento continua a não ser feito como deveria. As condições que permitiram ao vírus se disseminar anteriormente estão aí”, diz ele, que é doutorando na Universidade de Oxford.
 
Segundo o médico, a escala gigantesca da pandemia se deveu sobretudo a ações do governo de Jair Bolsonaro. Mas Schnekenberg diz que também houve um sentimento geral no Brasil que ele define como “wishful thinking”, termo em inglês que significa algo como querer acreditar no melhor cenário.
 
“De maneira geral, a sociedade minimizou, mas a gente sabe desde o começo que dessa doença é relativamente previsível, a matemática não é complicada. É uma doença de fácil transmissão”, diz.
 
Desde que os números da pandemia começaram a subir de forma acelerada, no ano passado, Bolsonaro vem sendo acusado de ser genocida por diversos opositores, que mencionam a possibilidade, por exemplo, de oferecer uma denúncia contra ele junto ao Tribunal Penal Internacional (TPI), com sede em Haia, na Holanda.
 
Para a maior parte dos especialistas em direitos humanos e legislação internacional, no entanto, o enquadramento jurídico do presidente neste crime é difícil.
 
O genocídio é definido com base em uma convenção da ONU de 1948, que estabelece uma série de critérios para que esse crime esteja caracterizado.
 
É preciso que a agressão seja direcionada a um grupo étnico, nacional, racial ou religioso, o que não é o caso da Covid-19, que afetou todo o espectro da população brasileira.
 
Além disso, é necessário que haja a intenção de causar destruição, algo que precisaria ser provado pelas atitudes negacionistas de Bolsonaro, ou pela displicência ao adquirir vacinas, por exemplo.
 
Para Sylvia Steiner, ex-juíza do TPI, as cifras assustadoras de mortos no Brasil tornam compreensível que se use mais livremente o termo genocídio. “É inevitável que isso ocorra na falta de uma palavra melhor, pois expressa bem a indignação que as pessoas sentem diante da situação”, afirma.
 
Mas juridicamente, diz ela, os critérios para que se considere um crime genocídio não podem ser banalizados. “O que não pode é que qualquer evento com muitas mortes você chame genocídio, que é conhecido como o crime dos crimes”, afirma.
 
Passada a marca macabra de meio milhão de mortos, a pergunta inevitável é: até onde a calamidade pode chegar? Qual a chance de chegarmos a 600 mil ou 700 mil, por exemplo?
 
Coordenador do Infogripe, sistema que analisa dados de Covid-19 da Fundação Oswaldo Cruz, Marcelo Gomes diz que “fazer previsões é pedir para errar”.
 
O que se pode dizer, afirma ele, é que a desaceleração da curva, quando houver, será suave, o que apenas pelo fator inercial já somará mais algumas dezenas de milhares de óbitos à conta.
 
“No horizonte imediato, no curtíssimo prazo, a gente ainda deve observar um aumento de mortes por causa do número de casos que percebemos há umas três semanas”, diz Gomes.
 
Numa perspectiva mais longa, afirma o pesquisador, é preciso esperar o ritmo da vacinação e quais medidas de isolamento social ainda serão adotadas por estados e prefeituras.
 
“O número de casos nas duas últimas semanas deu uma leve estabilizada, o que se refletirá no número de mortes. É como se tivessem fechado a torneira, mas ainda estamos nos afogando na piscina”, afirma. Mas, segundo ele, é cedo para apontar uma tendência duradoura de queda.
 
Até agora, menos de 12% da população foi vacinada com as duas doses, número bem abaixo dos 70% considerados necessários para controlar a doença.
 
Pior, diz Gomes, há um número crescente de pessoas que estão ignorando a segunda dose, o que compromete toda a estratégia de imunização.
 
“Além da menor eficácia, há a questão de por quanto tempo é o efeito protetor de tomar uma dose apenas. Essa questão da memória do sistema imunológico ainda não está clara”, afirma.
 
Fonte: Folha de SP

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