'Supermercados não têm função social no Brasil', diz José Graziano frente à inflação dos alimentos

16/04/2025

O preço dos alimentos no país vem acumulando altas. Apenas em março, a comida subiu 1,17%, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A situação preocupa especialistas, como é o caso do ex-ministro José Graziano da Silva, que atuou no primeiro governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), na pasta de segurança alimentar e combate à fome, e foi responsável por implementar o programa Fome Zero. 
 
Para o especialista, dois pontos precisam ser destacados para explicar a alta. O primeiro são as incertezas globais provocadas pela “postura do presidente Trump”. “Essa turbulência acaba nos afetando a todos, porque cria uma expectativa de que as coisas vão subir”, explica em entrevista ao Conversa Bem Viver desta segunda-feira (14)
 
Mas Graziano também aponta para questões internas no Brasil. Por exemplo a postura de país “celeiro do mundo”, que prioriza a exportação e não o controle do preço interno, indexando alguns itens ao dólar. O especialista fala também da dificuldade do Brasil em retomar os estoques de grãos, como arroz e feijão.
 
Por fim, Graziano aponta como medida prática e efetiva para o momento atual um diálogo entre o governo, os donos das redes de supermercado e das cadeias produtivas. 
 
“Os supermercados no Brasil não têm nenhum papel social, é um puro papel comercial. Isso precisava ter acompanhamento, monitoramento. Essa é uma política que falta muito”, afirma.
 
“Então o governo tem o direito e o dever de chamar os caras para conversar: ‘Olha, não dá para manter um preço desse’.”
 
Confira a entrevista na íntegra
Como o senhor viu o resultado da inflação de março?
 
Isso reflete bem a incerteza que estamos vivendo nos dias de hoje, muito agravada pela postura do presidente [Donald] Trump dos Estados Unidos de fazer uma alta incrível nas taxas de produtos para praticamente todos os países do mundo. 
 
Então, isso causa uma certa turbulência nos mercados, como costumam chamar os da Faria Lima. E essa turbulência acaba afetando a todos, porque cria uma expectativa de que as coisas vão subir, e isso é o que faz a especulação. A especulação é basicamente isso, criar uma expectativa de que amanhã vai ser mais caro. 
 
Aparentemente a inflação brasileira está não apenas sob controle, como está caindo, mostra sinais de queda. Esse IPCA [Índice de Preços ao Consumidor Amplo, o índice oficial de inflação do país] de 0,56% vai um pouco nessa direção. Não é o que nós gostaríamos, mas é uma queda, mostra uma tendência de queda. 
 
Isso tem muito a ver com o remédio que nós estamos tomando, que é os juros de 14%, um dos maiores, senão o maior juros do mundo.
 
Como é que isso reflete nesses índices de alimentação? Essas mudanças todas estão afetando um dos preços fundamentais no mundo todo, que é o preço do dólar. Cada dia é um número diferente, você imagina fazer o cálculo de um importador ou um exportador do que ele vai comprar.
 
O caso do ovo é um caso exemplar. O que acontece com o ovo? Tem uma crise de produção nos Estados Unidos. Os Estados Unidos sofrem com um problema da gripe aviária, que nós já tivemos no Brasil no passado, em 2003, e isso corta drasticamente a produção de ovos, fazendo o país passar a importar.
 
Isso significa que o preço do ovo passa a ser indexado ao dólar. Quando um produto tem uma grande proporção para ser exportada, o preço interno do produto, do que fica no Brasil, passa a acompanhar o valor do produto exportado. E é isso que nós temos em grande parte dos nossos alimentos, uma indexação ao dólar.
 
De uma maneira diferente, é isso acontece com o feijão também. Quando o valor da soja aumenta, quem produz feijão pode deixar de plantar para priorizar a soja, para ganhar mais dinheiro vendendo lá fora. Mas afeta o preço do produto aqui no Brasil. 
 
O Brasil se abre para ser um grande produtor e exportador de alimentos pro mundo, mas, de alguma maneira, ele internaliza esses preços em dólar sem ter uma estrutura preparada pra isso. 
 
Um país que se propõe a ter essa política exportadora precisa ter mecanismo defensivo interno. Um, por exemplo, que o mundo todo tem, são os estoques. Os estoques são recomendados para prevenir problemas de secas, cheias e outras intempéries. 
 
O Brasil, com a irresponsabilidade do governo Bolsonaro, zerou todos os estoques de alimentos. O governo Lula entrou com estoques zero e a tentativa de recompor levou um bom tempo porque falta recurso, os armazéns estavam deteriorados, os canais de compra estavam desativados. 
 
Enfim, essa política hoje está sendo recomposta, mas ainda não temos resultados para apresentar. 
 
Que medidas o senhor apontaria frente a essa situação?
 
Esse é o típico problema que não tem uma bala de prata. Ela tem uma série de circunstâncias estruturais que afetam os preços dos alimentos. 
 
Não é de hoje que os preços dos alimentos vêm subindo. Eu acabei de ver uma pesquisa que mostra que entre 2009 e 2023, uma série de produtos alimentícios aumentaram mais de 300%.
 
E nessa lista é impressionante, porque inclui produtos como batata, ovos, mandioca, carne de boi, cebolas e cítricos. Mostrando que não é um problema acidental de uma seca, de uma geada. É uma questão estrutural. 
 
Nós não tínhamos uma política de abastecimento até entrar no governo Lula. O governo precisa ter um sistema de monitorar preços, saber quando o preço está subindo demais. E a maior parte dessas cadeias produtivas dependem de recursos do governo, crédito, uma série de medidas sanitárias, etc. 
 
Então o governo tem o direito e o dever de chamar os caras para conversar: “Olha, não dá para manter um preço desse”. Os supermercados no Brasil não têm nenhum papel social, é um puro papel comercial. Isso precisava ter acompanhamento, monitoramento. Essa é uma política que falta muito. 
 
Falta também pensar em circuitos alternativos. Os municípios têm um papel muito importante no abastecimento. Então, feiras livres, programa de estímulo à comercialização de produtos de estação, por exemplo, que os municípios podem fazer e deviam fazer e fizeram durante muito tempo.
 
Essa guerra tarifárias imposta pelo Donald Trump pode afetar a ambição do Brasil de sair do Mapa da Fome até 2026?
 
O Brasil tem todas as condições e eu acredito que vai, sim, sair do mapa da fome novamente em 2026. O impacto das tarifas não deve afetar tanto a nossa capacidade de abastecimento interno. 
 
Claro que nós temos um perigo grande aí, que é o que vai passar nessa guerra particular entre os Estados Unidos e China. Se a China voltar a ser o aspirador de chinês, de sair a comprar todos os produtos do Brasil, aí nós temos um problema. 
 
Mas o chinês não gosta muito de feijão e arroz eles têm suficiente. Então eu acho que basicamente os produtos de abastecimento nosso não serão tão afetados.
 
Eu acredito que, particularmente no caso brasileiro, nós podemos ter, sim, algum benefício no sentido de abrir mais mercados. Mas tem também muitos riscos, por exemplo, aumentar a dependência da China.
 
Fonte: Brasil de Fato

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